domingo, 8 de julho de 2018

Sobre o tempo



O tempo é uma referência que mantêm a continuidade e a ilusão de movimento. Se uma pessoa encontra-se “parada”, ele se move através do tempo. Isso é facilmente perc eptível, pois ainda que tal pessoa permanecesse “parada” pelo resto de sua vida, seu corpo se moveria através das idades. Assim, o tempo é a “contagem” do transitar das formas através do espaço. Seu estado contínuo de mutação somente pode ser percebido no espaço. O espaço, por sua vez, é um símbolo do tempo nas formas, pois ao tempo não se pode ver. Contudo, um espaço qualquer é preenchido pelo tempo que se leva para percorrê-lo, seja através do olhar, no átimo da expansão e retorno da luz; seja fisicamente, através dos deslocamentos.

                O tempo não adquire para si nenhuma característica atomística, ou material. No entanto, seu maior pressuposto é a orientação. Podemos dizer que a orientação é o propósito do tempo neste mundo separado. O tempo orienta o homem em sua ilusão de formas no espaço. Assim, um carro que passa em uma estrada não está passando em absoluto, pois o carro mesmo não pode mover-se no tempo, pois o tempo não é uma característica física. Por outra: o carro, ao percorrer os espaços, está traindo seu caráter imutável, e está adquirindo mutações de efeitos, que são totalmente apreendidos pelo seu devir. Neste sentido o Vitor estava certo em dizer que o devir apreende a noção de agora, mas apenas em sua característ ica puramente física, isto é, separada. O “agora”, enquanto uma probabilidade, não pode ser levado em consideração em absoluto, pois os argumentos de Epicuro reduzem a zero a probabilidade da existência do agora. No entanto, o agora pode ser pensado como uma hipótese, e, assim, mais uma vez o Vitor acertou ao verter o assunto à característica, ou seja, à entrega.

                  Mas o que o Vitor quis dizer foi isto: o espaço enquanto matéria se faz por sua transição em formas. Assim, as formas possuem em si o devir de suas mudanças de posição. Mas este “devir” é uma suposição ainda, na qual se atarefa uma experiência que demonstra a mutabilidade de tudo. A esta experiência nomeamos “agora”, pois ela seria o limite do tempo no espaço, e o limite do tempo no espaço é o “tempo zero”, o “instante este”, a absoluta supressão do devir, que é a presença.

                Parece complexo, pois falamos de uma experiência que ainda percebes apenas potencialmente. No entanto, partiremos de um exemplo para auxiliar a compreensão. Digamos que uma bola está a rolar sobre uma mesa de sinuca. Se tirássemos uma fotografia desta bola em movimento, poderíamos dizer que “capturamos” seu antigo devir. Se pudéssemos tirar todas as fotos possíveis do deslocamento desta bola, teríamos sua trajetória “capturada”, e cada foto seria uma fatia de tempo ocupando um lugar na trajetória. Para uma determinada fotografia destas, poderíamos chamar sua imagem de devir, ou de agora, mas nunca de presença. A presença é o aspecto vivo do agora. O agora é uma ideia. O devir, uma intuição. Mas a presença é luz, pois a presença relaciona-se d iretamente com a entrega.

                 Assim, a única maneira de se falar do tempo, em suas formas separadas, sob o ponto de vista da cura, é através do agora ou do devir. Mas a única maneira de se perceber a experiência do tempo como uma ilusão se dá através da entrega.

                Entrega a quê? Poderias perguntar. Entrega total ao que esta acontecendo. O perdão é ausência de julgamento da transição das formas. Não se sabe para onde as formas vão no decorrer do tempo. O tempo é uma estrada invisível onde coisas paradas mudam de lugar. Isso é o mais próximo neste mundo separado daquilo que chamamos Todo. O Todo é uma unidade em aspecto inefável. Quando dizemos que o Todo é simbolizado pelo tempo, queremos dizer que em si o tempo comporta todas as mudanças que ocorrem neste mundo separado. No entanto, como ele mesmo é uma característica da separação, a sua qualidade não é total, não é estável, e o próprio tempo é relativo. Assim, podemos dizer que a noção de agora e de devir são relativas. São “pontos de vista”, p or assim dizer. Mas a entrega é o símbolo da compreensão disto. E com ela vem o conhecimento daquilo que é impossível dizer aqui. 

Um mundo sem significado gera medo.




Ver o mundo significa encontrar uma alternativa para a verdade. Por “ver” queremos dizer “perceber”. Assim, perceber o mundo através de quaisquer dos sentidos — ou mesmo através de intuições — significa trocar a verdade por aquilo que chamamos no UCEM de “separação”.
Ora, mas tudo o que sentimos atesta que a separação é real, pois tudo o que percebemos é atestado pela própria percepção.  A realidade da assim chamada “vida” atesta que o organismo detentor da vida é o próprio ser, separado das coisas que vê, a mercê de um universo exterior, que se apropria de seu destino enquanto estiver por aqui.

O tal “universo exterior” possui significado, dado pelo indivíduo à medida em que cresce e se habitua às imagens no formato “mundo”, e os nomes das coisas passam a relativizar suas formas separadas, sendo tais os nomes próprios ou abstratos, as coisas tangíveis e intangíveis. Dentre as coisas intangíveis, Deus.

O uso da razão (intelecção) é o ato classificador de experiências. Tais experiências podem ter origem através dos sentidos ou através da pura especulação (razão), sendo tal razão utilizada em favor de algo compreensível pela mente humana. A metafísica, por sua vez, trata de atribuir a um contexto “suprasensorial” a capacidade de a mente humana atingir contato com o atributo Deus. No entanto, as capacidades limitantes da mente humana em se ater apenas aos sentidos e à razão faz com que os seus epítomes fenomenológicos não atinjam mais que a mera especulação, quando dialogada com uma metafísica que surge como um “oposto” à física (matéria).

Mas o Livro Texto diz que “Deus não tem oposto”. Existe, portanto, algo totalmente diferente da física (matéria) e da metafísica: chamaremos isso de “estado”, caracterizando limitadamente com essa palavra um atributo sem oposto.

O estado de Graça é uma expressão amplamente utilizada para representar uma imersão de alguém em um momento indefinível, de total beatitude, onde tudo parece estar certo, ou nada está fora do lugar, e o mundo é visto como abençoado. Tal estado, no qual os opostos são abolidos, não está certo no sentido moral, pois uma pessoa em estado de Graça pode estar assistindo ao despejo catastrófico de quaisquer noticiários de seu país. Mas o pressuposto mental de quem está imerso em um estado de Graça é semelhante a uma revelação, diante da qual o caráter altamente valorizado como catastrófico pelo eventual telejornal — que somente pode ser percebido diante de um outro estado melhor, desejado, não catastrófico —, não faz qualquer sentido para ele, pois em tal estado não há desejos. Tudo está certo como é. A ilusão não pode ser compreendida como algo que possa ser “consertado”.
Paulos dos evangelhos dizia da “paz de Deus, que excede todo o entendimento”. Não poderia haver melhor definição. O estado de Graça não pode ser compreendido, nem sentido, nem mesmo percebido; no entanto, trata-se de uma experiência.

Esta experiência não pode ser buscada, pois ela é obscurecida pelo ato “desejo”. Se você desejar por ela, a perderá. Isto também é dito de forma muito interessante nos ensinamentos do budismo.  O desejo (inclusive o desejo de um mundo melhor) impede a oportunidade de um estado pleno, sem opostos, pois desejar é querer “de outro jeito”.

A entrega necessária a tal estado de Graça prioriza um total desprendimento, mas não se trata de um desprendimento das coisas materiais, pois um homem pobre pode muito bem ser cheio de desejos em seu coração, enquanto um outro homem remediado, ou mesmo rico, pode não ter nenhuma destas ambições. Abrir mão da forma não significa abrir mão de seus símbolos. Devido justamente a isso, existem representação de deuses da abundância em quase todas as religiões. E quando se fala da vertente cristã da prosperidade, a tratativa esperada deveria ser essa.

Enquanto a busca empreendida neste mundo for por conta de opostos, nada podemos esperar diante da revelação. Os sentidos apoiam os opostos, bem como a razão também opera através de raciocínios fundamentados em efeitos e causas, diante de diversas aplicações possíveis. Mas mentalizar a salvação é tão inútil quanto tentar explicar a uma formiga calculo diferencial e integral. Na verdade, a comparação nem é tão boa assim. Melhor dizer que tentar explicar a beatitude do estado salvífico é o mesmo que nadar por fora d’água.

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Uma última consideração: em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões, o psicólogo suíço Carl Gustav Jung autorizou publicar um escrito seu, chamado Septem Sermones ad Mortuos (Sete Sermões aos Mortos). Nesta obra, Jung explica que há deus e há o diabo, mas além destes dois, existe ABRAXAS, que é ainda mais indeterminado que ambos, e que não tem opostos. Eu entendo ABRAXAS como uma figuração bastante apropriada para o estado sem opostos. Adiante da porta que permite tal Estado, encontramos o que chamamos na tradição cristã de Deus, mas que palavra nenhuma dá conta do Significado.

Os nomes que damos as coisas são tentativas de organizar o mundo perante a separação, que divide o dia e a noite na forma de complementos separados. Isso se dá com todos os outros pares imagináveis. Os nomes dados às coisas são tentativas de recuperar um estado definitivo, mas todo nome pode ter um antônimo arranjável. O mundo é classificado em ideias, e nada mais que ideias são os pressupostos que dão nomes aos bois. Quando tudo é classificado e nomeado, nada mais sobra para ser visto sob a ótica da revelação. Ter significado sobre as coisas foi o ato desesperado que o homem tomou para atingir algum saber. No entanto, seu saber o separou o Ser em fatias, chamadas corpos, e cada um está em busca daquilo que depreende entender diante de suas razões, apreendidos em corpos. Este é o “erro” fundamental, ou o “equívoco” primeiro: o desejo adâmico de dominar o mundo.  

Todos tem que passar por essa fase. A forma que pode dirimir tal desejo está presente na associação entre a mente certa e a ausência de desejos. Para isso, um exercício que visa mudar a perspectiva de pensador para mero expectador traduz-se na expressão: um mundo sem significado gera medo. Com isso, podemos entender que a gana, o grande desejo de dar significado a todas as coisas, surge de um investimento total na separação. No entanto, o mundo não tem significado, e Deus não criou um mundo sem significado. Assim, a revelação trará uma real revelação do mundo, um beatífico estado, sem oposto e, portanto, sem dúvidas.

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