Ver o mundo significa encontrar
uma alternativa para a verdade. Por “ver” queremos dizer “perceber”. Assim,
perceber o mundo através de quaisquer dos sentidos — ou mesmo através de intuições
— significa trocar a verdade por aquilo que chamamos no UCEM de “separação”.
Ora, mas tudo o que sentimos atesta
que a separação é real, pois tudo o que percebemos é atestado pela própria
percepção. A realidade da assim chamada “vida”
atesta que o organismo detentor da vida é o próprio ser, separado das coisas
que vê, a mercê de um universo exterior, que se apropria de seu destino
enquanto estiver por aqui.
O tal “universo exterior” possui
significado, dado pelo indivíduo à medida em que cresce e se habitua às imagens
no formato “mundo”, e os nomes das coisas passam a relativizar suas formas separadas,
sendo tais os nomes próprios ou abstratos, as coisas tangíveis e intangíveis.
Dentre as coisas intangíveis, Deus.
O uso da razão (intelecção) é o ato
classificador de experiências. Tais experiências podem ter origem através dos
sentidos ou através da pura especulação (razão), sendo tal razão utilizada em
favor de algo compreensível pela mente humana. A metafísica, por sua vez, trata
de atribuir a um contexto “suprasensorial” a capacidade de a mente humana
atingir contato com o atributo Deus. No entanto, as capacidades limitantes da
mente humana em se ater apenas aos sentidos e à razão faz com que os seus epítomes
fenomenológicos não atinjam mais que a mera especulação, quando dialogada com uma
metafísica que surge como um “oposto” à física (matéria).
Mas o Livro Texto diz que “Deus
não tem oposto”. Existe, portanto, algo totalmente diferente da física (matéria)
e da metafísica: chamaremos isso de “estado”, caracterizando limitadamente com
essa palavra um atributo sem oposto.
O estado de Graça é uma expressão
amplamente utilizada para representar uma imersão de alguém em um momento
indefinível, de total beatitude, onde tudo parece estar certo, ou nada está
fora do lugar, e o mundo é visto como abençoado. Tal estado, no qual os opostos
são abolidos, não está certo no sentido moral, pois uma pessoa em estado de Graça
pode estar assistindo ao despejo catastrófico de quaisquer noticiários de seu
país. Mas o pressuposto mental de quem está imerso em um estado de Graça é semelhante
a uma revelação, diante da qual o caráter altamente valorizado como
catastrófico pelo eventual telejornal — que somente pode ser percebido diante
de um outro estado melhor, desejado, não catastrófico —, não faz qualquer
sentido para ele, pois em tal estado não há desejos. Tudo está certo como é. A
ilusão não pode ser compreendida como algo que possa ser “consertado”.
Paulos dos evangelhos dizia da “paz
de Deus, que excede todo o entendimento”. Não poderia haver melhor definição. O
estado de Graça não pode ser compreendido, nem sentido, nem mesmo percebido; no
entanto, trata-se de uma experiência.
Esta experiência não pode ser
buscada, pois ela é obscurecida pelo ato “desejo”. Se você desejar por ela, a
perderá. Isto também é dito de forma muito interessante nos ensinamentos do
budismo. O desejo (inclusive o desejo de
um mundo melhor) impede a oportunidade de um estado pleno, sem opostos, pois
desejar é querer “de outro jeito”.
A entrega necessária a tal estado
de Graça prioriza um total desprendimento, mas não se trata de um
desprendimento das coisas materiais, pois um homem pobre pode muito bem ser cheio
de desejos em seu coração, enquanto um outro homem remediado, ou mesmo rico,
pode não ter nenhuma destas ambições. Abrir mão da forma não significa abrir
mão de seus símbolos. Devido justamente a isso, existem representação de deuses
da abundância em quase todas as religiões. E quando se fala da vertente cristã
da prosperidade, a tratativa esperada deveria ser essa.
Enquanto a busca empreendida
neste mundo for por conta de opostos, nada podemos esperar diante da revelação.
Os sentidos apoiam os opostos, bem como a razão também opera através de raciocínios
fundamentados em efeitos e causas, diante de diversas aplicações possíveis. Mas
mentalizar a salvação é tão inútil quanto tentar explicar a uma formiga calculo
diferencial e integral. Na verdade, a comparação nem é tão boa assim. Melhor
dizer que tentar explicar a beatitude do estado salvífico é o mesmo que nadar
por fora d’água.
***
Uma última consideração: em seu
livro Memórias, Sonhos e Reflexões, o psicólogo suíço Carl Gustav Jung
autorizou publicar um escrito seu, chamado Septem
Sermones ad Mortuos (Sete Sermões aos Mortos). Nesta obra, Jung explica que
há deus e há o diabo, mas além destes dois, existe ABRAXAS, que é ainda mais indeterminado
que ambos, e que não tem opostos. Eu entendo ABRAXAS como uma figuração
bastante apropriada para o estado sem opostos. Adiante da porta que permite tal
Estado, encontramos o que chamamos na tradição cristã de Deus, mas que palavra
nenhuma dá conta do Significado.
Os nomes que damos as coisas são
tentativas de organizar o mundo perante a separação, que divide o dia e a noite
na forma de complementos separados. Isso se dá com todos os outros pares imagináveis.
Os nomes dados às coisas são tentativas de recuperar um estado definitivo, mas
todo nome pode ter um antônimo arranjável. O mundo é classificado em ideias, e
nada mais que ideias são os pressupostos que dão nomes aos bois. Quando tudo é classificado
e nomeado, nada mais sobra para ser visto sob a ótica da revelação. Ter
significado sobre as coisas foi o ato desesperado que o homem tomou para atingir
algum saber. No entanto, seu saber o separou o Ser em fatias, chamadas corpos,
e cada um está em busca daquilo que depreende entender diante de suas razões,
apreendidos em corpos. Este é o “erro” fundamental, ou o “equívoco” primeiro: o
desejo adâmico de dominar o mundo.
Todos tem que passar por essa fase.
A forma que pode dirimir tal desejo está presente na associação entre a mente
certa e a ausência de desejos. Para isso, um exercício que visa mudar a
perspectiva de pensador para mero expectador traduz-se na expressão: um mundo sem
significado gera medo. Com isso, podemos entender que a gana, o grande desejo
de dar significado a todas as coisas, surge de um investimento total na
separação. No entanto, o mundo não tem significado, e Deus não criou um mundo
sem significado. Assim, a revelação trará uma real revelação do mundo, um
beatífico estado, sem oposto e, portanto, sem dúvidas.
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