sábado, 28 de maio de 2011

UCEM - Sobre a natureza inclassificável do perdão.

Obrigado a ti!




O perdão é um aceite da alma. Uma condição na qual não se vê nada além do visto. A comum reação acerca do perdão, isto é, a forma como o perdão é lido pela maioria das pessoas, está ligada a um entendimento de barganha. Ocorre quando se vê o pecado no outro e depois se perdoa isto. Funciona assim: alguém te xinga, por exemplo, e você diz: tudo bem, ele me xingou, mas eu não vejo nisso pecado, pois eu sou um estudante do Curso em Milagres, então perdoarei, e assim comete-se o erro do orgulho escamoteado em auto conceito. O conceito que se atribui a si mesmo em casos como este está devotado ao princípio vaidoso de se acreditar melhor que o outro. Assim, julga-se para depois perdoar. Outro exemplo: digamos que meu carro estivesse limpo, então eu sujasse o carro para depois lavá-lo, e ao final dissesse: agora sim! Fui eu quem limpou! Ora, assim há engano e barganha, na medida em que se troca a limpeza por mais um conceito, um trabalho inútil, que concebe ao indivíduo a tarja de ser um homem, digamos, higiênico, ou cuidadoso. Isso não vale de nada, é só mais de verniz. Não adianta tu olhares teu próximo com ódio para depois perdoar, somente com o intuito de convencer a ti mesmo que foste tu quem lavaste a alma de teu irmão, que já está limpa. Contudo, se tu ainda não és capaz de distinguir bem o amor de outra coisa, que é o pedido de ajuda, precisas limpar tudo o que vês, mas esse tipo de limpeza em que tu mesmo sujas o que limpas não é nada, de nada adianta, a não ser trazer para ti trabalho desnecessário e a condição geralmente dolorosa de rebaixares a ti mesmo à condição de gari do teu ego.  

Ver o visto — eis tudo! Ver o visto é estar com o olhar devotado ao instante. O instante é um conceito, como o “agora”, ou o “momento este”.  Não pode ser dito de outra forma e a linguagem aqui é mero acessório. No Reino, a maior poesia é fala comum, é uma gíria, uma linguagem desnecessária. Tudo é entendido no instante mesmo que é, pois não se atém a conceitos: o Reino — É. Obviamente, pedir a ti que estendas o Reino através das palavras é tarefa fadada ao fracasso por conta da limitação da língua, de qualquer língua. Contudo, a linguagem faz às vezes de vetor, e se considerares isso, expressões como “momento este”, “ver o visto” ou “agora” cumprem funções de tabuletas. Assim, o homem do letreiro, que indica alguma coisa, és também tu.

Encontrarás muitos irmãos que escrevem letreiros com outras coisas, como flores; ou música, ou trabalho, ou exemplo de si, com qualquer coisa que se possa usar para colocar na tabuleta a inscrição “vai-se por aqui”. Tu que lês, também tens teu talento, e sobre isso se escreverá em outra ocasião.

Perdoar, contudo, é a função que promove a verdadeira linguagem, que é a linguagem da verdadeira limpeza. Perdoar é não ver sujeira em lugar algum. O perdoado não é aquele que limpou os outros, mas aquele que não viu o sujo jamais. Por isso se diz que não podes dar o perdão através das palavras. Se alguém chegar a ti pedindo um conselho, tu não diz algo que direcione, pois não há caminhos consignados. Não podes dar a ninguém uma ilusão, pois o que dás, recebes, e se dás a um irmão a ilusão do caminho, no mesmo momento recebes ilusão, e se configura um não existir em intervalos. Contudo, se apenas entrega ao teu irmão o teu visto, o teu olhar que é, o teu estar em si, apenas vês o que ele é ali contigo, e não julgas o nenhum valor, então tu és santificado, e perdoas com o caráter verdadeiro do amor, que é o respeito. O respeito é não-interferência. Realmente, neste mundo, em algumas ocasiões um irmão pode estar menos desperto, então ofereces o milagre a este irmão. Em outros momentos, és tu quem o recebe, mas não há configuração de valores nisto.  Às vezes, este milagre pode estar escondido numa forma, mas a forma não importa para além do conteúdo. Para tanto, tem uma história:

Certo dia, eu vinha do mercado em meu carro e estava em um dia bom, desses de mente certa. Parei no semáforo e se aproximou de mim uma mulher mendiga. Estava maltrapilha em toda sua forma de magreza, quiçá de crack, ou estrago de fomes, ou qualquer outra destas coisas que o abandono provê em sua judiaria de rua. A mulher veio com um sorriso construído, que denunciava a mentira de precisão em medicamentos. Isso eu soube pelo ato da imagem. Digamos que não fosse assim, mas naquele momento eu julguei assim. E, por julgar, classifiquei a mulher como está descrito acima, e o espírito dela agora chega até você como uma imagem passível de tantas misérias. Mas peço-te a paciência de seguir as palavras até que elas completem seu sentido. Resolvi, então, que não ia dar esmola coisa nenhuma. Essa seria a maneira de ajudar que entendi ali, isto é, não fomentar a mendicância. Assim, eu poderia “lavar” a mulher. Este foi o entendimento errado que tive. No entanto, como se fosse um arrebatamento de mim, como se eu pudesse ser movido, minha mão alcançou o cinzeiro do carro, onde estavam depositadas algumas moedas, e então vi a mulher mendiga e soube que ela era espírito, como se ela fosse um “ser crustáceo”, no dizer de Guimarães Rosa. Não julguei, apenas soube, e como soube, como tive certeza disto, eu não sei dizer, pois não foi um saber de natureza descritiva, como da mulher mendiga que vi e julguei, mas era como se agora eu visse uma Rainha, a Mãe dos Homens, a sensação de estar diante do próprio ser feminino em suas formas de belezas sobrenaturais, elevadas pelo que era amor em termos de sentir o outro como sendo o mesmo, e sobre isto eu não sei dizer mais. Então, entreguei-lhe as moedas, olhei no olho daqueles olhos, e disse: eis aqui, Senhora; e a mulher por um instante era digna e estava em si, e me ajudava a estar ciente disto. Então ela colheu as moedas e me disse um obrigado que era como se fosse o agradecer de iguais, e depois disto olhou para o lado e estava em ternas lágrimas. Embora ela estivesse agora de perfil, eu ainda via seus brilhos olhos, e, olhando ainda para o lado, ela repetiu: obrigada, moço. E se foi.

Não posso interpretar esta história por ti. Peço, no entanto, que não a julgues, que a perdoe, e talvez assim ela ganhe algum significado para ti.

Obrigado por leres até aqui. És bem vindo aqui. Te amo.

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