Para Vitor Meireles e Lillian Paes.
I – Separação.
Na pequena rua central da cidade de Jerusalém, próxima ao templo antigo, via-se um amontoado circular de pessoas, todos homens, algo que já se sabia o que era e representava, pelo costume comum do Sinédrio, mas ninguém se apiedaria dos resultados. A lei — dizem — quando é imposta, significa meramente a ordem, e nenhum quer ser contrário à ordem, até mesmo para não ter que partilhar um destino como o de Estevão, que vinha pela rua, trazido amarrado, já açoitado de um tanto, amordaçado para seu próprio bem, pois este Estevão era um que dizia advertências inadmissíveis acerca da religião judaica, imperiosa à época naquela região, e eram acusações de modos graves e em formas de enleio, acusavam, pois eis que este Estevão propunha o que chamava de Caminho, e as pessoas que o escutavam criam nisto: havia uma possibilidade de salvação, um estado de espírito para cada um de nós partilhar, em formas de sabedorias e paz, ao modo do que fora divulgado por outro, um que se chamava Yeshua — o exemplo mestre de Estevão — um homem que diziam santo e que morrera na cruz dos romanos, mas antes vivera naquela região ensinando a paz da mente, traduzindo a dor em vida, em suas formas literais, como se vê nos olhos mansos. Pois Estevão escutara de um amigo deste Yeshua, que chamavam Apóstolo, o recado da paz de Deus, da possibilidade do homem viver feliz, e então compreender estes ensinamentos e divulgá-los. Reuniu-se com outros seis, e passaram anos estudando as referências orais que recebiam, aqui e ali, até mesmo de outros homens que viveram com Yeshua, como um certo Tadeu e outro André, que anos antes já vinham pregando o que viria a se chamar depois de evangelho, mas que Estevão dizia em raiz de etimologia apenas ser uma boa nova, sem sobrecargas de novas semânticas.
Pois ali, naquela rua, agora eram os fariseus que se reuniam para apedrejar Estevão. O homem este, de modos serenos, embora judiado, de tanto se ver que babava, posto sangue e alguns arranhos e roxos, estava ainda de pé, em meios moles de apoio, mas o olhar, sempre firme em calmo, era a força daquele homem, que se via — e até doía em que tivesse os olhos para ver — pois se via nele o olhar sereno do perdão. O círculo — de homens, de lei, de juízo — desmontava suas formas a modos de cada qual escolher no saco posto próximo as melhores pedras fossem, sopesando os próprios medos — as projeções de muita culpa eram juízo de toda pena de morte.
Saulo escolhera três. Nenhuma pontiaguda, devido o costume, pois estas podiam gerar ferimentos mortais muito rapidamente, não dando tempo ao condenado para refletir durante a duração da pega, para pedir perdão contrito pelo método da dor, pois o apedrejamento era para ser um instrumento pedagógico, no qual o sujeito, recebendo as pancadas, percebia-se culpado, e morreria glorioso, pedindo o perdão que não saberia pedir de outra forma, e isto, para quem assim entendesse, era uma maneira de amar. Ou ao menos de salvar aquela pobre criatura que não entendia ainda sobre o que os apedrejadores não sabiam nada, mas se alguém se achegasse até algum dos homens deste círculo hediondo e perguntasse como poderia um homem se salvar por meio da dor, nenhum saberia responder, e talvez o questionador fosse apedrejado também, para ser perdoado da blasfêmia de perguntar a quem não sabe responder, mas executa.
O amigo de Saulo, Filipe, lhe chamou ao lado, e disse: — este não vai morrer rápido. Não está nem chorando ou participando ódio. Então dá pra pegar dessas aqui, ó: e apontou para o amigo algumas pedras que continham rispas cortantes em formato quase lâmina. Saulo, então, disse: — assim não, Filipe! Ora, não vai se dar o tempo para o homem pedir seu perdão? Então riram, pois Saulo era ingênuo, e o ingênuo pode ser muito tolo às vezes. Além de tudo, era jovem demais àquela época. Ele realmente acreditava que o ódio tinha sua parcela de clareza, pois mesmo deus, esse, o minúsculo, que se acredita sendo, mas não o é, tinha condenado alguns à morte. Esse deus, na verdade, era apenas um entendimento insano, um ídolo, mas não se sabia disto àquela época, e o melhor efeito deste entendimento inverso era punir, para expiar.
Trouxeram Estevão, e ele foi posto no centro do círculo. Teve a mordaça retirada, mas permaneceu em silêncio. Os homens — uns vinte — continuavam sopesando as pedras à mão. Alguns sorriam fino, discretos, imperceptíveis por volume espesso de barba, aspirando ao momento de prazer escasso que seus egos permitiam. Em outros, no entanto, se via mesmo que estavam impacientes, chutando a terra seca e levantando o pó, enquanto gritavam trechos do Antigo Testamento, amalucado por eles, e cuspiam em Estevão, com escarros, e depois açoitavam pontapés. Um homem começou a cavar o buraco no qual enterrariam Estevão até a cintura, deixando suas mãos livres, para se defender, pois isto era ato de justiça, conforme a lei. Primeiro falou o rabi, que apontou o motivo, declarando culpado Estevão por atos divulgados de idolatria, e por ser ele mesmo um idólatra. Os homens no círculo em volta soltavam gritos urros, felizes feras, e, assim, estavam mesmo grunhindo impávidos uivos de dor, que se percebia, como estivessem alegres, e a quem assistisse a tudo aquilo era tão estranho perceber, que o mundo estava ali entregue à loucura.
Estevão foi posto no buraco cavado até a altura de sua cintura. Os homens ali presentes insistiam em levantar a poeira com pontapés que alteavam nuvens ocre. Saulo, inadvertido, aspirou um tanto de poeira: um levante ocasionado pelo homem ao seu lado, que dizia barbarismos e sorria sua falta de dentes para o jovem Saulo, enquanto escolhias as pedras. Saulo assustou-se com aquela loucura, pois avistava também Filipe, seu amigo, cuspindo alto, gritando, e de alguma maneira percebeu-se dividido em relação a tudo aquilo — por um instante, um único instante — e eis que foi suficiente.
— Saulo! — berrou Filipe — pega a pedra! Tá pensando em quê, ô, ô, olha lá, olha lá!
E Felipe apontava para Estevão, pois o rabi cobria-lhe a cabeça com o branco pano formato saco e os homens não sabiam o que faziam, e àquela época eram praticamente todos, e assim damos graças a Deus ao Sermos.
O rabi afastou-se de Estevão e todos passaram a um estado eufórico, alguns até babejavam. Então atiraram a primeira pedra, e o que se viu foi uma mancha, que circulou encarnada um ponto lateral do saco branco, e, lentamente, crescia em seus vermelhos, como uma flor do mal que desabrocha em bom jardim. O homem banguela que estava ao lado de Saulo sopesou bem a pedra que mantinha â mão, arqueou o corpo para trás, por torção de cintura, esticou o braço mais atrás ainda, até que o equilíbrio somente se manteve quando levantou uma das pernas para frente, ao que a utilizou como uma alavanca ao corpo atirando à frente o braço catapulta — e acertou em cheio o dorso de Estevão.
Então, o banguela sorriu sua ausência de sorriso para Saulo e Felipe, e gritou:
— Atira, atira, acerta! Hé, hé, hé.
Assim, Saulo sorriu fino e atirou a primeira de suas pedras.
II – Percepção Certa.
— Saulo! Ô Saulo! Gritava insistentemente Filipe: que foi, hein, hein, unhf! Como vais argumentar que ficaste aqui, Saulo, perdendo tempo, pensando, como se fossemos combater milhares, com todo esse batalhão aqui fora montado, para perseguir um homem só, desarmado? Tá pensando em quê? Você pensa muito, Saulo! Ação! Ação, homem! Morte ao Barnabé!
Assim, Filipe exortava o amigo, o líder dos soldados romanos, Saulo, a levantar-se e tomar uma atitude. Eis que vários anos já se havia passado desde o apredejamento de Estevão. Saulo agora era soldado romano, comandante, e Filipe era seu imediato ordenança, ativado por honrarias de bravura crueza em divulgar o ódio, que diziam patriotismo, mas nutriam por si mesmos, projetados nos cristãos, que perseguiam com empenho devotado aos inversos.
O homem que Saulo queria capturar e matar chamava-se Barnabé. Era outro da linhagem de Estevão. Parecia que, de agora em diante, depois daquele Yeshua, desses nunca mais faltariam, e era preciso acabar com todos, assim pensava Saulo, e emendava em planos de perseguição. Isto é a Vontade de Deus! E seria assim agir em Sua vontade. Ademais, parecia certo, pois Deus mesmo poderia voltar e atirar um raio contra ele, ou sete pragas contra seu povo, ou demasias de outras tiranas vontades que Ele promulgava para Seus Filhos, e eis que Deus, certamente, fosse assim, deveria odiar os homens. Saulo, que chegara a absorver essa concepção insana de Deus, temia saber de qualquer outra coisa que não fosse favorecer os atos que lhe impunha a forma de matar, matar, matar, pois isso lhe parecia a cura, pela eliminação do assunto.
Barnabé, o outro, era um antigo rico, que um dia vendeu tudo o que tinha e entregou aos apóstolos, para tornar pública a Mensagem, e assim passou a caminhar pelo mundo a divulgar o que lhe foi dado divulgar, e era a mensagem do Caminho, do empenho em se rever a Deus sem medo, através do ato amável do perdão. O perdão, este ele dizia ser a cura para o mal da alma, pois somente o perdão conseguiria irradiar no mundo o amor, semeando a Palavra, e Barnabé queria ser veículo, cumprir sua função aqui, de sua melhor maneira, que era através da Mensagem. Assim, Barnabé tornou amigo daqueles que incentivaram Estevão.
Certo dia os apóstolos trouxeram a má notícia: Saulo estava a caminho com as tropas. Dali onde estavam os soldados até aqui, Damasco, seria dia e meio, dois, no máximo. André falou a Barnabé que melhor seria então se esconder por uns tempos, ir quem sabe à Antióquia, aguardar que alguém aplacasse a fúria de Saulo, manter-se isolado, sem divulgar a palavra, sem cumprir sua função. Barnabé redarguiu que estar com Deus era seguro. Na verdade, era a única coisa segura que se poderia fazer. Então, prosseguiu com seu plano, e foi para a cidade de Damasco pregar a palavra. André, Tadeu e Mateus seguiram para o Chipre e até a Antiópia, pregando também a palavra, e cada um foi para um lado, estando todos unidos. Embora houvesse a temida opressão, embora a ferocidade de Saulo, embora tudo. E, naquele momento, distante dali, sobre a barraca, Saulo estivesse tão indiferente aos anseios gritos de Filipe, conjurando mais e mais de seu tão antigo ódio.
Mas Saulo deixou seu aposento — na verdade, apenas uma barraca de campanha melhorada, com aspectos de conforto, mas era mesmo uma hospedagem de guerra. Lá fora, percebeu seus soldados descansando. Alguns em roda conversavam, outros afiavam as espadas, mas havia uma fogueirinha ali que trazia uma luzinha a todos aqueles rostos enegrecidos pela noite, e Saulo os viu com uma espécie de compaixão profunda. Ao seu lado, Filipe argumentava em favor da fúria, que era para irem logo, matar logo, matar. Para quê então ficar aqui perdendo tempo, ô, ô, Saulo, vamos! E, perto dali, um cavalo relinchou. Mas Saulo não estava em seus meios de mal ouvir. Na verdade, estava imerso em um inadvertido estado pacífico, um silêncio interior que fazia com que os sons externos fossem apenas o contorno daquilo. Olhava para as coisas com o imprevisto olhar de quem apenas vê o visto, e não pensava sequer em Barnabé ou glórias de promoção hierárquica, queria só ser a si, só. Ali, em estado de gente, Saulo entendia o que não entendia, mas quando pensou nisso, perdeu, e lhe veio o som de Filipe dizendo já em meio de frase: ...então é melhor dormir, ora bolas! Onde já se viu um comandante que etc.
Saulo perdeu a paciência com os quí-quí de seu ordenança e gritou com Filipe uma aspereza: saia daqui! Não me amole! ——— Filipe assustou demais...
A ordem do chefe assim tão imperativa em termos de mau humor, com ele, logo com ele, tão smegoalmente amável. Assim Filipe sentiu despeito, alimentou dois orgulhos e saiu de perto do chefe, em modos de sim senhor, sim senhor, embora não deixasse de complementar: mas o senhor deveria ponderar, sim, ponderar sempre, não se esqueça comandante Saulo. E sumiu no escuro, afastado da pequena chama da fogueirinha.
Alguns soldados observaram aquilo e se assustaram demais. Ora, se Saulo tratara assim seu ordenança, imagine se viesse para o lado deles, meros acessórios, Saulo sempre fera, criso em seu semblante? Era a morte ali! Então, todos se tornaram muito muito circunspectos. Um deles quis até apagar a fogueirinha — os homens em torno dela já haviam até se levantado — mas Saulo de longe gritou, passando a mão na cabeça, visivelmente transtornado: não, soldado! Deixa o fogo aceso, pode deixar. Melhor assim. É que eu...mas Saulo não soube completar a frase, e saiu em passos largos em direção a uma clareira ao lado do acampamento onde estavam.
Chegou à clareira rapidamente, e pouco depois alcançou ouvir que o burburinho bom dos soldados se refazia aos poucos. Saulo negava até a si, mas gostava de vê-los assim descontraídos. Ele queria poder dizer que gostava daqueles homens, a maioria eram fiéis ao seu comando, e que de muitos ele até simpatizava. Mesmo aqueles dos quais não simpatizava, eram disciplinados, pois não sairiam daquele pelotão por nada. O trabalho mais fácil do exército romano era servir ao centurião Saulo. Ora, sair na busca de cristãos era o melhor trabalho do mundo! Os caras dificilmente revidavam, não tinham exército, estavam sempre em pequenos grupos, e a população, embora argumentassem algo em favor deles, estavam sempre dominados pelo medo. Então, era muito bom ser soldado de Saulo, era como fazer parte de uma legião.
Permaneceu na clareira por um bom tempo, totalmente dividido. Em parte, a memória da beatitude que experimentara a pouco lhe recordava a paz; por outra, uma série de obrigações representadas pelos conselhos de Filipe lhe diziam que deveria partir. Não sabia como retornar ao instante santo. Tinha medo do que não entendia. Aproximou-se de uma árvore e pôs uma das mãos espalmada sobre o tronco, apoiando assim o corpo exaurido pela estafa em pensar. Então, disse em voz baixa, mas com a firme convicção dos cansados: “Meu Deus, dá-me a tua lei”, conforme um costume da época. Assim, quando definitivamente se rendeu à exaustão e desistiu do que fazer, Saulo ouviu um pensamento em sua cabeça que disse: “Saulo, eis que a lei é tua”.
Ele rapidamente empertigou-se e olhou para os lados desembainhando a espada. Sabia que ouvira apenas um pensamento, mas era uma Voz muito lúcida para ser o seu pensamento conforme o percebia, e ficou estupefato por não ver ninguém, embora de certo modo soubesse, mas não admitisse, de Que se tratava.
Saulo caminhou de um lado para outro na clareira, não sabia mais em quê pensar. Olhou novamente para a árvore e estacou de seus anseios, viu apenas uma imagem, ao que parecia que era apenas ele sendo apenas isto: via o que via, e não pensou nada mais, não houve nenhuma série de conflitos mentais dos quais estava acostumado a perceber. Filipe era uma lembrança muito antiga, desnecessária agora. Olhou apenas para a imagem da árvore, e ficou novamente encantado, imerso em um estado de total vibração, pois ele reverberava com a imagem que era a paisagem à sua volta, e estava em estado pleno de si. Seu coração batia forte, ele não sabia o que fazer, pois estava ainda dividido. Mas em um momento de atenção profunda, em que percebeu um pequeno pássaro noturno que pousara no galho da árvore à sua frente, manteve-se maravilhado com a sensação pacífica de estar-no-mundo, e eis que o pensamento voltou e lhe disse: “te farei uma pergunta, uma única pergunta, Saulo, que desfará todas as outras. Para isso, segue agora para Damasco.” E eis que ele fielmente obedeceu a essa primeira ocorrência.
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Esta é apenas uma fábula que nos ajuda a compreender alguns conceitos do livro Um Curso em Milagres aplicados em uma relação mitológica. O restante da historia, conforme a tradição estabelece, já conhecemos, pois esta é uma versão ficcional do período imediatamente anterior ao da bíblia, quando o apóstolo Paulo, ainda chamado Saulo, preparava-se para perseguir e matar Barnabé. No caminho para a cidade de Damasco, recebeu a Revelação, manifesta sob a forma de uma pergunta: “Saulo, Saulo. Por que me persegues?”. Adicionamos apenas que o nome Saulo provêm do hebraico: שָׁאוּל- Sha'ul; " aquele que pediu, aquele que orou por, ". Assim, pedimos que nos ajude também a Deus, amém.
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Quando o Amor, todo Supremo e Não-Manifesto, contempla a Si Mesmo com palavras inventadas e manifestas, porém, belamente ordenadas, eis o que chamamos Arte. A arte é nascida do dois, mas reverencia o Um - e só por isso a chamamos de Arte. É grandiosa a função do Artista, pois todos gostam de Arte - e seu poder de comunicação mental é grande. O artista é também escudeiro da Verdade, tal como o profeta, no entanto, é mais dura sua responsabilidade pois não lida só com a classe crédula - lida com a grande população - e pode elevar o néscio ao amor do conhecimento pelo caminho do sábio prazer. A Arte tem o poder, portanto, de embelezar os caminhos árduos. Foi dito por um escritor que a Beleza salvará o mundo - e já salvou. Chamamos de Beleza Redentora o último suspiro de dor e o primeiro de felicidade de um filho pródigo. Tua obra, amigo, demonstra teu nobre sacerdócio. Felizes os homens que sabem para o que vieram.
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