domingo, 4 de setembro de 2016

Sobre a confusão que nubla a inteligência.





“Não acredito, nem desconfio.  
Fico na minha.”
Arnaldo Antunes, em: Naturalmente.


               A mente não está para o corpo assim como o cérebro está para o ato de pensar. Segundo a acepção que o mundo dá para o que chama “mente”, o equilíbrio das forças que fundamentam o ato de pensar deriva de uma inteligência entendida como um fator de relações entre causa e efeito. Como as relações entre causa e efeito aparentam seguir-se, ela (a mente) precisaria desenvolver seu raciocínio baseada em um pressuposto lógico, no qual a entrega às conclusões se dá por conta das relações entre estes dois elementos no tempo.

               No entanto, a mente, conforme trata o Curso em Milagres deste elemento, não pressupõe um relator entre causas e efeitos como o mundo os entende e sequer deriva disto um acordo significante. Em termos mais claros, podemos dizer que a mente não abrange o significado e a causa em seus valores relativos, mas coloca em perspectiva verdadeira o que apreende diante da significação daquilo que é capaz de perceber como se tivesse sido “dado”, mesmo que em muitas vezes tal ato não pareça “fazer sentido”.

               Chamaremos aqui neste texto de “mente santa” toda referência à relação entre a percepção que o Filho de Deus pode ter de si mesmo diante de um fenômeno tido como um milagre. A consciência do milagre, portanto, não se dá através da mente ordinária, ou comum, pois ela precisaria de “razões” para entender seus pressupostos. A mente santa, diferentemente, atribui pra si uma referência muito diferente, baseada em terminologias que são distintas umas das outras pela característica presente na elisão de seus opostos, e não pela sua separação.

               Daremos exemplos em breve; mas, por enquanto, tentaremos entender o que se passa com a linguagem comum a que estamos condicionados e veremos mais claramente o que queremos dizer por “mente ordinária”, ou comum, que daqui por diante chamaremos apenas de mente, em contraposição à noção de mente santa, que queremos discutir.

               Obviamente, seria um erro desprezar a mente. Ela é a ferramenta que dá significado à separação, mas também é o instrumento que permite distinguir. A inteligência pode ser obliterada por conta de confusões derivadas de um uso indisciplinado da mente. Todas as pessoas são inteligentes. O atributo confuso pode, no entanto, fornecer a um sujeito a caracterização de si mesmo como confuso, que daí pode chegar a diversas conclusões equivocadas por conta do uso confuso da ferramenta de aprendizado que possui. No entanto, o aprendizado é uma característica de disponibilidade, e não pode ser desterrado como se houvesse sido “extinto”. Todas as pessoas são capazes de aprender, pois vida é aprendizado.

               Por mais que uma pessoa possa durante sua vida resolver questões lógicas baseadas na forma, tal pressuposto sempre ocorre mediante o confronto de elementos opostos. Não podemos pensar em calor sem ter para si o conceito de frio. Mesmo as noções abstratas — como no caso da palavra “democracia”, por exemplo — possuem uma terminologia que a distingue de outras, embora neste caso os contrapontos sejam escolhidos pela própria mente em conceituação, pois os termos abstratos não deixam claros seus elementos opostos de forma tão óbvia como no caso concreto de frio/calor, alto/baixo, claro/escuro etc. Para elencar um oposto para a palavra “democracia”, por exemplo,  a pessoa teria que inferir dentro de seu sistema de valores o elemento que a distingue, que poderia ser “o comunismo”, “a guerra”, “o parlamentarismo”, “a monarquia” e por aí vai. Assim, o sistema de opostos que permite que a mente “pense” faz suas próprias distinções diante do aprendizado que adquire. O aprendizado abstrato torna a pessoa capaz de mentalizar os opostos diante de conceitos que ela mesma racionaliza. Já dissemos que os termos concretos, por outro lado, são mais imediatos.

               Na linguagem cotidiana, o ato de falar apreende suas significações a partir do sistema de relações entre opostos. A cada vez que se procura comunicar algo mediante o uso da linguagem racional, tem-se que distinguir seus usos, e isto é feito sem interferência do pensamento acerca deste processo, ou seria praticamente impossível dizer qualquer coisa, pois teríamos que saber de qual oposto falamos para poder emitir algo. Poderíamos, por exemplo, dizer que temos medo de altura, mas não precisamos para isso dizer que nos sentimos seguros em lugares planos ou que a altura pressupõe vertigem por conta de sua constituição “longe do chão”. Quando alguém diz que ama, não precisa pensar em ódio ou em desfavor. Nem mesmo no caso do frio, que alguém pode evocar diante de uma noite fria, precisa ser lembrado em contraposição ao calor, pois seria um tanto estranho dizer: — você pode fechar essa janela? Pois não estou sentindo muito calor. Certamente, seria mais razoável dizer: — Você pode fechar essa janela? Pois estou com frio. No entanto, essa mesma pessoa poderia pensar que preferiria estar numa linda praia no verão ao invés de estar sentindo frio. Mas isso, pensado assim, não faria mais parte da constituição inicial de seu pensamento, pois o que ela queria era fechar a janela e deixar de sentir frio. O pensamento posterior surge de um desejo mediante o julgamento do frio como algo não desejável. Poderíamos dizer que, nesse caso, a mente busca livrar-se de suas circunstâncias de mal estar julgando uma situação atual de acordo com o estado separado em que se encontraria mais favorável. E esse estado é o oposto de outro. Assim, sempre que algo está acontecendo no agora, e é julgado, é sempre julgado em favor de seu oposto separado. Por isso se diz que a mente somente pode fornecer seus sentidos mediante a pressuposição dos opostos. E é por isso também que a mente é a ferramenta capaz de “pensar” a separação.

               A mente certa, ou mente santa, não opera assim. A mente certa, que não julga, não pode ser compreendida pela mente ordinária, ou comum, pois para que o conceito de mente certa pudesse ser compreendido pela mente comum, ela teria que comparar a mente certa com um oposto. Para a mente ordinária, ou comum, a “mente que não julga” é meramente a mente paralisada, ou a mente que está em silêncio, ou a mente que não faz nada e é inútil, ou qualquer pressuposto que possa fornecer-lhe uma contradistinção. Sem distinguir, a mente pira, e o caminho é mais ou menos por aí. É impossível para o pensamento racional distinguir o estado mental da mente certa em contraposição a um oposto. Assim, é igualmente impossível pensar como estás acostumado a fazer se quiseres usar a mente certa a teu favor. É preciso aprender a não julgar simplesmente, sem estar-se condicionado a procurar entender que se está “deixando de julgar”.

               Por isso que tanto se fala no Curso em Milagres sobre disponibilidade. A mente do Espírito Santo, ou a mente certa, não está atrelada a um sistema de pensamentos baseados em contrários, simplesmente porque ela não está baseada em opostos. O iluminado não é o contrário de um tolo, assim como Deus não tem oposto. Se quiseres fazer uso correto de tua mente ordinária, ou comum, será preciso que estejas disposto a entender que os opostos não tem fundamento. Assim, nenhuma conclusão a que chegas pode ser segura através da mente comum, que pensa sempre em separado e em relação a opostos. A única maneira de escapar disso é começar a pensar de um modo totalmente diferente. Por isso discorremos agora acerca da alternativa que Um Curso em Milagres oferece.

               A mente certa não é um mecanismo de pensamento. Ela não está em busca de comparações ou associações. Cada pressuposto que se atém à mente como se fosse um pensamento é compreendido pela mente certa como a ocorrência de um fenômeno irreal. A fonte que anuncia o modo de operar da mente certa é totalmente abstrata, mas de um modo bastante diferente dos termos pelos quais exemplificamos com a palavra “democracia” anteriormente. A abstração a qual nos referimos aqui não pode ser pensada, pois ela não tem forma e, portanto, não tem oposto. Podes lembrar agora do que está escrito no Livro Texto sobre o conhecimento, que não tem nenhum tipo de paralelo com a percepção. Somente o pensamento é fundamentado na percepção. O conhecimento é abstração sem forma, e o pensamento da mente certa, embora possa constelar-se como uma forma (palavras, imagens, sons) não pode ser jamais comparado com outra coisa contrária ao que entrega, pois o pressuposto do pensamento da mente certa é a certeza e somente a oposição produz dúvida.

               Poderias, entretanto, dizer agora que, quando sentes frio, tens certeza de que estás sentindo o frio que sentes, pois ainda confias na tua percepção como a tua única realidade. Decerto, podes também pensar que não estás sentindo calor; mas a questão real que o pensamento certo da mente certa te propõe em termos de tua salvação é este: existe frio? Existe calor? A tua percepção é a realidade? Queres ser salvo deste mundo?

               Vamos continuar: o pensamento da mente certa é dado. Ele não precisa ser pensado ou construído. Ele nem sequer é aprendido. Pode-se dizer que ele é inconsciente até que estejas disposto a se entregar a ele. Mas por ser inconsciente isto não quer dizer que ele não tenha atuação. Se a mente certa não atuasse em teus pensamentos, seria impossível escapar. O pensamento certo é perdão completo porque ele não julga em relação a opostos. Ele sabe que o oposto do nada é o mesmo nada. A mente ordinária, ou comum, presta-se ao enleio da separação, e está todo o tempo julgando, ela não oferece perdão. É impossível para a mente comum silenciar seu julgamento, pois este é o modo de operar dela. Para não mais nos repetirmos, vejamos como a verdadeira inteligência vigora na compreensão pura, em lugar da mecanização da compreensão.

               Se a mente perdoa completamente, se a mente percebe a si mesma como íntegra, ela não precisa de opostos. A mente passa a servir ao pensador, ao invés de estar condicionada a entregar-lhe apenas resultados. Se não julgares, se quiseres aprender como fazer isso, tens que lembrar que a metafísica da mente certa abrange tudo, e o todo não está oposto ao nada, pois o todo abrange tudo. A mente certa tem onisciência, pois tem a mesma substância da Mente de Deus. Ela não está atrelada ao tempo. A mente ordinária está atrelada ao tempo, pois precisa de passado e futuro para “ter tempo” para que suas conclusões aconteçam. A mente certa conclui agora, sem precisar de tempo para isso. Ela apenas atesta, ela não favorece nenhuma conclusão. E bem sabes que essa conclusão não será feita por ti.

               Toda resposta vigora nisto: não estás neste mundo, onde percebes a ti mesmo como um corpo. Nisso tens que investir toda a tua fé. Se tens um problema ordinário para resolver, a própria percepção disto como um problema já te coloca em condições de julgar. Seja como Jesus, Que não se preocupava com Seus problemas, pois ele nunca pensou que tenha tido algum. O descortinar da solução é claro para aqueles que estão apenas deixando a si mesmo serem, sem interferir nos resultados. O ego quer ganhar o mundo, pois ele quer concluir. O modo de ser da mente abstrata é altamente condicionado a um pressuposto que não define nada, pois tem confiança certa na certeza, e não na dúvida.

               Sobre a metafísica da mente certa, que inclui a tudo, podemos divulgar certamente que ela sustenta as imagens deste mundo que fizeste como um todo, integrado, ao qual queres dominar. Deixa que as coisas sejam por si mesmas, elas estão totalmente integradas na mente certa. Esse mundo já acabou há muito tempo. Apenas fazes uma travessia na tua imaginação. Liberdade não é entender, é se entregar. Ausência de defesas é liberdade plena. Isso parece “difícil no começo, eu sei que é, mas depois não é mais não”. Confiança é a primeira característica dos Professores de Deus. Tampouco fique a tentar se adequar a qualquer coisa que seja. Esse dia é de Deus. Entrega a Ele, e Ele te proporcionará as surpresas de amor que são totalmente alegres e não tem em si nenhum tipo de definição. O Filho de Deus não teme o incompreensível, pois ele sabe que de nada sabe, mas tem certeza de que é amado totalmente, e é por isso mesmo que ele pode perdoar, pois não existe nada para perdoar. Inteligência é entrega. Toda conclusão inteligente surge de uma obviedade, pois inteligência é a simplicidade em estado puro. A mente certa é de uma obviedade fantástica. Em breve saberás disto pela tua própria experiência.

               Pai, viemos agora em petição de amor, para que possamos lembrar-nos de Tua Mente Certa, para que saibamos Dela por Si Mesma, e para isso abandonamos nossa vontade de controlar e pedimos em humildade verdadeira que Tu nos ajude a lembrar de nossa grandeza, pois somos Teus Filhos e tu não negas a Teus Filhos aquilo que Eles Mesmos São. Lembra-nos disto, Pai. Amém.
.
""Agora a memória não é senão o impedimento a essa inteligência; a memória é independente dessa inteligência; a memória é a perpetuação dessa consciência do “eu” que é o resultado do meio, desse meio cujo significado completo a mente não viu. Portanto a memória estupidifica, frustra a inteligência que está sempre a devir, a inteligência sempre em movimento, intemporal. Mente é inteligência, mas a memória impôs-se à mente. Isto é, a memória sendo essa consciência do “eu”, identifica-se com a mente, e a consciência do “eu” aparece como se estivesse entre a inteligência e a mente, assim dividindo-a, estupidificando-a, frustrando-a, pervertendo-a. Portanto a memória, identificando-se com a mente, tenta tornar-se inteligente, o que para mim está errado – se é que posso usar aqui a palavra “errado” – porque a mente em si é inteligência, e é a memória que perverte a mente nublando assim a inteligência. E por isso a mente parece sempre procurar essa inteligência intemporal, que é a própria mente."

(Krishnamurti)