domingo, 1 de maio de 2022

A ética do infinito


“O termo ‘sombra’ refere-se à parte da personalidade que foi reprimida em benefício do ego ideal’.

Edward C. Whitmont, em: A busca do Símbolo.

Uma maneira dual de ver o mundo baseia-se no confronto entre seus opostos. Hora se está por cima, hora outra por baixo. Nas vicissitudes da maré observa-se o mesmo. E os pares noite-dia, feminino-masculino são alternâncias arquetípicas emblemáticas deste trânsito entre opostos da forma como se dão na natureza.

Numa sociedade, seus códigos e contextos fornecem aquilo que o homem convenciona como atos corretos e atos errados, e isto tem que se dar assim, pelo menos neste momento da história. No entanto, sabemos quase que por convenção ética que roubar é errado. Que matar não é coisa que se faça e que certos atos tipificados como crime não precisariam sequer estar registrados no código penal. No entanto, ao homem cabe decidir, tomar decisão, escolher.

Diante deste panorama, o contexto social apresenta uma lista categorizada como “atos bons” e outra que é o seu oposto. O homem, em busca de orientação pessoal, procura se enquadrar em uma destas listas, como uma âncora de comportamento; e notadamente elege estar entre aqueles que seguem a lista dos “atos bons”.

Certamente, este homem terá algum conflito entre suas verdades pessoais e aquilo que a sociedade elegeu como bom; e, logo, logo, diante do fato contemporâneo que apregoa que o bom é aquilo que está “certo”, o erro será tido como maldição. Para cada ato errado deste homem poderá haver uma a crença instaurada em seu juízo de que certa responsabilidade punitiva caberá a ele por desobediência civil à tal ética vigente.

Exemplos são aos montes. A discussão de Whitmont sobre o conflito entre o ego ideal e a sombra prova que os atos errados podem ser interpretados como o mal, e não como erros. E o erro vem da falta de confiança. Sem confiança, o homem precisa se apegar às leis comuns de ordem. Mas nisto pode haver a própria desordem, uma vez que dificilmente alguém consegue coincidir os atos certos e errados da sociedade com exatidão, precisão e ainda assim modelá-los à sua própria personalidade sem que com isso tenha relegado algum modo de pensar à uma região sombria. E é justamente disto que o Espírito Santo precisa para libertar o sujeito da experiência de uma vida assustadoramente projetada.

A associação entre mal e erro converge em nossa cultura cristã para uma certa ideia nomeada como pecado. Qualquer conflito que induza à noção de que errar é o mesmo que cometer um mal acende um alerta social que sinaliza: cuidado, tal e tal coisas erradas e, portanto, más (desde que consideradas pelo ponto de vista da sombra).

O mal e o erro são categorias em oposição ao bem e ao acerto, mas nenhum habitante que tenha passado por esta terra soube separar completamente estas duas categorias de forma perfeita, com exceção dos neuróticos. Mesmo o Curso cita que ninguém está ciente do Poder o tempo todo. Se estivesse, não precisaria nem mesmo estar aqui. Diante deste aprendizado, os atos considerados suspeitos são atos culposos, e, portanto, são imperdoáveis; devem ser relegados a uma região sombria (os sete pecados capitais são exemplos arquetípicos desta culpa).

A ética que não se opõe a nada é aquilo que vou chamar aqui de ética do infinito. Não é a ética maniqueísta do bem contra o mal. É a ética da sombra e da personalidade integral, ou aquilo que nos chega através da mente certa em oposição à mente errada, como tais conceitos são definidos no livro Um Curso em Milagres.

A mente certa é pensar com confiança e em Deus. Um pensamento da mente certa muito bem pode estar em oposição direta a certa ética vigente (vide a vida de Jesus Cristo). No entanto, ninguém precisa mais de fazer um sacrifício caso queira seguir nesta direção, pois, de fato, a frase horripilante “Cristo morreu pelos nossos pecados” faz sentido se for entendia como “Cristo, mesmo tendo que passar pela pior das privações, provou que sua ressureição existe e está disponível para todos, pois antes que Abraão existisse, Eu Sou.”

A ética do infinito diz que a parte da mente que não foi aceita pela sociedade não deve ser ultrajada. O ego não será exterminado, mas reinterpretado. E o Espírito Santo espera que lhe entreguemos tudo. Assim será para mim, assim também para meu irmão. A ética do infinito não apregoa culpa, mas perdão. Nem importa as categorias do erro do teu irmão, elas são todas irreais. É óbvio que neste momento da história isso não se dá na civilização de maneira a desconsiderar o código de ética vigente, então convém cuidados. Mas tais cuidados não devem ser entendidos como supressões daquilo que não pode ser aceito (por mim ou pelos outros), mas como aquilo que deve ser compreendido como um ato cometido no mundo (por mim ou pelos outros). O que é errado hoje pode ser certo amanhã e a dança das classificações dos atos humanos na história prova isto. E Deus não tem escolhidos, somente filhos muito amados e muito queridos por Ele. Perdoe a si mesmo e perdoe as projeções vistas lá fora como o “mal”. Assim como diz o Curso, não deves fazer isto por seres “bom e piedoso”, mas porque tais coisas que dançam entre opostos são irreais, e podem mudar de classificação de uma hora para outra, não são confiáveis, ao passo que as ideias da mente certa são eternas, e a elas pode-se dedicar completa confiança. 

O UCEM diz que há apenas uma pergunta e uma resposta. Nada poderia ser mais simples: a pergunta é uma ilusão e a resposta é a expiação; fora do mundo dos opostos não existem alternativas entre isto ou aquilo, pois tudo é um. Quando a mente se alinha com a Mente de Deus, toda a ilusão é revelada, e a culpa não pode mais existir: qualquer escolha entre ilusões é sem significado. Assim surge a completa expiação. No entanto, neste momento da história, poucos são aqueles que se alinharam neste nível, então é preciso alinhar algumas ações com o contexto das ilusões até que se saiba realmente de que se fala quando se fala em ilusão. 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

O mundo bom

E sejas tu o meio pelo qual o teu irmão ache a paz
na qual os teus desejos se realizem


O mundo é carente de amor verdadeiro e de relações reais. E tantas são as vezes em que nos queixamos por não presenciar relações assim! Por outro lado, será que esperamos sempre de outros a abertura? Será que não vale a virtude de apresentar-se neste mundo como bom para outros? Não será tal a ausência de misericórdia neste mundo que estejamos sempre culpando aos outros, deixando de incluir a nós mesmos como vetores de um mundo favorável ao despertar?

Todas estas perguntas parecem direcionar para a ideia de que o mundo bom precisa de um começo. Nós precisamos ser este começo. Não basta apenas esperar o amor como algo que vem de fora sem que estejamos dispostos a dar amor. Este é um ponto importante. Para ver o mundo bom, temos que ser o mundo bom para os outros também.

Este pequeno ato de coragem  em ser bom para os outros — precisa ser mais bem explicado. Ser bom não significa que você deva ser o cumpridor ético e moral de todas as virtudes que o mundo prega. Sabemos pela nossa própria experiência que o bom de hoje é o mal de amanhã, pois neste mundo tudo muda o tempo todo. Então não se trata de ser atoleimado neste bem, como fosse para sempre uma mão aberta diante de palmatórias. Palmatórias às mãos abertas são ilusões, e elas podem muito bem ser repreendidas. Não se trata de ser ingênuo neste bom, mas há uma forma de gentileza e de amor ao próximo que está presente em todas as ações, e se forem entregues ao Espírito Santo podem ajudar para que sejamos bons e educados, gentis e generosos, felizes em ver o nosso irmão e alegre em contagiar os encontros com boas vibrações. E não existe uma forma certa de se fazer isso. Mais vale xingar ao teu amigo no sentido contrário que chamá-lo por um elogio diante de uma hipocrisia.

Podes muito bem contemporizar que somente um santo conseguiria se portar desta forma em todas as suas relações. Realmente, neste mundo, em que algo bom pode se transmutar em ruim de uma hora para outra, isso não deixa de ser verdade. Mas deve haver uma predisposição nesta direção: quero ser o mundo bom para as outras pessoas, quero ser gentil, quero ser alguém que traz alegria, e se eu não puder estar neste modo de ser em todos os momentos, quero acreditar que posso me esforçar neste sentido e fazer isto sempre que me for possível.

O mundo bom não pode ser só um mundo no qual eu usufruo de suas benesses, mas é um mundo totalmente bom, tanto na ida quanto na volta. Não pode ser um mundo bom só para mim. Eu preciso fazer minha parte.

Ver o mundo bom é tão alegre e consistente que doar o mundo bom e receber as suas dádivas em bem se tornam valores com o mesmo peso. Tanto é bom dar como receber. É tudo a mesma coisa. Então ver o mundo bom pode muito bem começar com uma intenção em ser o mundo bom para os outros também. Pode ser necessário um esforço nessa direção no início.

Alguém poderia dizer aqui que ser bom para meu irmão e estar bem em relação a ele são ações que demandam autoestima. Convém lembrar o que o Livro Texto cita sobre a autoestima: “a autoestima em termos egóticos não significa nada além de que o ego iludiu a si mesmo a ponto de aceitar a própria realidade e é, portanto, temporariamente menos predatório. Essa “autoestima” é sempre vulnerável à tensão, um termo que se refere a qualquer coisa percebida como ameaça à existência do ego” (T-4, II, 6). Portanto, estar bem para teu irmão não é uma questão de autoestima e trégua. E o Curso define ser caridoso como uma ação em ver ao teu irmão como se ele já estivesse além de suas ações no tempo, que é o mesmo que dizer “olhar para teu irmão com olhar de perdão”. Não precisa de autoestima para se saber perfeito, o que só pode ser desdito pela arrogância. Mas nas flutuações deste mundo em que nós mesmos duvidamos disto, podemos evitar de duvidar da perfeição de nosso irmão em sua existência de além daqui e manifestar isso honrando-o.

Convém lembrar que o encontro é santo porque ambas as partes dele o são. Essa consciência ajuda a estar diante dos outros promovendo o mundo bom, sem medo de não “receber”. Tampouco estamos em busca de barganha. Seja educado, sem ser cerimonioso; seja gentil, sem bajulações; e seja amável e considere bem fazer isso mesmo em silêncio, honrando teu irmão em tua forma de pensar.

 

 

sábado, 9 de abril de 2022

Sobre o esporte

Entrega a Deus

Assim como qualquer coisa deste mundo, o esporte pode encarnar o ídolo. O ídolo sendo, então, algo percebido e dado a si a crença de real, divergindo de tudo o que é verdadeiramente real. Uma vez que não é possível que haja somente a afirmação “a verdade é verdadeira e nada mais é verdadeiro” para quem acredita em ídolos, o esporte pode, como qualquer outra coisa, ser favorável ao despertar, pois muitos milagres acontecem durante atividades esportivas.

É tudo a mesma coisa, mas falemos da crença no impossível apenas por enquanto. Alguns símbolos que as imagens fornecem — bem como as fantasias, as quais chamamos “costumes da civilização” — são todas irreais, tanto quanto a imagem ou fantasia portadora. Contudo, é preciso que seja inserida no rol das esperanças a própria esperança de que o impossível seja vencido, como nas palavras de Jesus. Embora essa ilusão tão convincente — como diz meu amigo Marcos Morgado — tome as vezes a forma de impossível, no esporte ela tende a ser desafiada muito costumeiramente, e a crença em vencer o impossível toma forma, em sua acepção mais contundente.

Não há nada a ser superado. O esporte como encarnação do ídolo possibilita crenças na vitória e na derrota. Essa crença é a base para muitos encantamentos diante da paixão que a crença em uma equipe/atleta vencedor engendra. O vencedor seria um valor em si, uma vantagem, um ato de conquista, e em grande parte o esporte suscita isso com paixão, o que pode vir a ser um tipo de idolatria, uma crença no irreal esportivo.

É comum vermos discussões entre torcedores, muitas vezes com um desenlace bastante inconsequente. Este aspecto da crença em que algo pode vencer outra coisa é uma ilusão. Mas neste momento da história, assim como qualquer outra coisa, o esporte encarna também campo largo para milagres.

Não se trata tampouco dos milagres de superação. Superar algo não é uma meta propriamente dita. Não há que se superar ilusões. “Eu venci o mundo” quer dizer apenas que não se crê mais em ilusões, algo que, neste momento da história, parece ser um feito realmente incrível. Cabe ao Espírito Santo, que olha para as ilusões e não acredita nelas, um julgamento correto sobre o que quer que seja. Assim, alta performance significa alinhamento com o Espírito Santo.

Mas o esporte alarga a medida da fé. Quando vemos um atleta competir como se estivesse entregue a algo “maior do que ele”, podemos entender este efeito. O piloto Ayrton Senna declarava que corria como se fosse “a pista que estivesse vindo”. Parecia-lhe que estivesse apenas a cumprir um ato pronto, dado, e ele era o vetor desta ocorrência que resultava em vitórias. A entrega lhe dava um aspecto de perfeição que o enquadrava entre atletas de alto rendimento.

Assim, pode o esporte permitir uma participação da disponibilidade do atleta em se ver com Deus. Claro está que Deus não tem preferidos, então, se o atleta oponente também estiver em Deus, teremos uma bela partida. E diante de adversários que se abracem, ganha também a torcida, que fica feliz com o espetáculo.