segunda-feira, 15 de setembro de 2014

UCEM e a Arte - (Zé Ramalho)

      

            Muito me desagrada ouvir pessoas desatentas comentarem sua desatenção como uma sentença. Certo dia desses, disseram-me de Zé Ramalho que suas músicas pareciam búzios, jogo de Búzios, sendo a desordem. “Não dá pra entender quase nada do que ele diz.” Realmente, curioso é: como então tanto êxito? E há tanto tempo? Não pode ser apenas o nada; ou, em melhor hipótese, talvez seja mesmo por isso. Portanto, sendo tal “nada” meramente simbólico, diremos dele coisas capazes de aproximar.

               Na verdade, se estiveres a ler até aqui, pode ser que já alcances entender a música de Zé Ramalho, pois não fostes embora ainda. De toda forma, emprego mal o verbo “entender”, pois não é este o caso, embora seja exatamente este o engano: não se pode alcançar entender — na acepção que se compreende algo como sendo o exato igual — as composições do poeta místico Zé Ramalho. Em suas músicas nada corresponde ao exato igual. Uma pedra pode ser tudo, mas nunca deixará de ser fundamento. Portanto, é nas imagens que reside o sagrado “segredo” das mensagens de Zé Ramalho. Tentaremos esboçar aqui uma aproximação a algumas delas.

               As músicas de Zé Ramalho sugerem as imagens em potência estética capazes de traduzir para a consciência mensagens de alta importância para o indivíduo. Quando se diz, por exemplo: “se eu disser que é meio sabido / você diz que é meio pior”, no meio de uma canção que trata de um homem e seu avô-pai (Avohai), percebe-se claramente uma acepção plausível nas conversas entre homens, onde o “sabido” é desfeito no meio de uma conversa sincera. Você diz a bobagem de sabido e o amigo demonstra amavelmente o erro e já emenda no acerto. Geralmente, disso se ri, pois percebe igualmente a si mesmo como um “planeta quando perde o girassol”, isto é, como alguém que saiu da órbita do sol, que perdeu a linha, saiu do foco etc, ou como diz o UCEM: “aquele que for o mais são no momento em que a ameaça é percebida, deve lembrar-se de quanto é profundo o seu débito para com o outro e de quanta gratidão lhe é devida e deve alegrar-se por poder pagar a sua dívida trazendo felicidade a ambos" (Texto: Cap 18, V, 7:1).

               Em “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu” o embate dos opostos é clarificado desde o título. Nosso apego em imaginar o mundo como sendo o simulacro do céu, numa espécie benevolente de platonismo, é desfigurado pelo ‘diabo’ da música com argumentos em favor da relatividade do bem e do mal. Certo é que a leitura unilateral do platonismo como o bem “bonzinho” desfigurou a sociedade a tal ponto que a neurose coletiva hoje em dia parece residir na crença em que o acerto pode vir a ser o errado acertado, ou a correção pela culpa, ou ainda a crucificação pela vida afora, no que se afirma como algo natural e justo que “cada um carregue sua cruz”. Nisto, nenhuma moral nos valha. Já sabemos pelos ensinamentos do UCEM que não há motivo para se carregar nem cruz nem culpa. Mas gostaríamos que a cruz (ou o medo) fosse o paraíso. Entanto, adverte o artista:


“Com tanto dinheiro girando no mundo,
quem tem pede muito, quem não tem: pede mais.
Cobiçam a terra e toda a riqueza
do reino dos homens e dos animais.
Cobiçam até a planície dos sonhos,
lugares eternos para descansar,
a terra do verde que foi prometido,
até que se canse de tanto esperar,
que eu não vim de longe para me enganar”.

            E na terra o homem vem a cobiçar até “a planície dos sonhos / lugares eternos para descansar”. Bem, se o intuito do homem é se enganar com o platonismo de bonzinho, vá lá! Mas aqueles que não vieram “de longe” para se enganar sabem que a cruz de bonzinho é o mesmo que a cruz de culpa e mal, sendo ambas engodo e ilusão, nada tendo nada a oferecer a não ser artifícios que apontam na direção ora de um, ora de outro. Nisto, o mundo gira, eternamente, neste embate de opostos. Então, na cobiça por riqueza “no reino dos homens e dos animais”, os homens buscam “lugares eternos para descansar”. Terra “do verde” prometida como sendo um lugar físico ou espiritual que se compra, com dinheiro ou com barganha de bonzinho. E o dinheiro é símbolo capital daquilo que se diz: “quem tem pede muito, quem não tem: pede mais”.

               No entanto, é no rio que se vê o restolho destes embates. Basta ver a poluição de qualquer rio que corta uma cidade. No rio, pode-se ver a correnteza a arrastar de tudo: desde os peixes que deslizam suaves nas profundezas aos troncos e outras coisas flutuantes que passam acima, na superfície. O psicólogo suíço Carl Jung falava que no rio próximo a sua casa de infância era comum aparecerem corpos de afogados, desavisadamente. Mas, dizendo simplesmente, o rio nada tem a ver com o que é jogado nele. Como julgaríamos o rio, então? O rio é bom ou mal? Na verdade, nada podemos dizer a respeito do rio. Portanto:

"A nau que flutua no leito do rio,
conduz à velhice, conduz à moral.
Assim como Deus, parabéns o mal”.

               Pois que, no rio de tempo, que é a vida, tanto faz o deus de bonzinho, de dono do céu, como o deus do mal de malzinho. É tudo a mesma brincadeira, os tais “jogos de enganar”. Podemos até rir disto tudo, se quisermos. Aliás, no UCEM se diz que "na eternidade, onde tudo é um, introduziu-se uma ideia diminuta e louca, da qual o Filho de Deus não se lembrou de rir. Em seu esquecimento, esse pensamento passou a ser uma ideia séria, capaz de ser realizada e de ter efeitos reais" (Texto: Cap. 27, VIII, 6:2-3). Portanto, trabalharemos, cumpriremos nossos compromissos, caso queiramos, sem jamais carregar nenhuma cruz. Não há nenhuma necessidade disso.


Finalmente, mesmo sobre este texto podemos dizer que

“O tom da conversa que ouço me criva
de setas, e facas, e favos de mel:
é a peleja do diabo com o dono do céu”.

               Traçamos aqui um panorama ilustrado utilizando pequenos trechos de duas músicas de Zé Ramalho (“Avohai” e “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”), já por si capazes de demonstrar a riqueza simbólica que se vê por toda sua obra. Utilizamos no início do texto a palavra “sagrado” em relação às músicas de Zé Ramalho, mas tal coisa não se deu por conta da sagração àquilo que se devota em altares, pois lugar santo de Zé Ramalho é função, é palco e festa. No entanto, agradecemos à arte e seu cumprimento em desfazer nossas doiduras. Um pintor pode encontrar no Livro do Apocalipse imagens capazes de extasiar quaisquer de seus afetos, desde que ele mesmo as compreenda e tenha talento para traduzir. Nisto, pode ser que seu quadro ilustre uma igreja. A arte aponta em direção a uma compreensão imediata, se realizada com perfeição. Perfeição não se trata de uma técnica perfeita ou de um ponto fechado ao qual se chega. Todo artista sabe que a perfeição estética é impossível. Mas o verdadeiro artista igualmente percebe quando “vibrou a corda da poesia”, no dizer do Poeta Adélia Prado. Nisto, pode-se dizer que o artista realizou uma obra de arte.

               Adicionalmente, a tradição do trabalho de Zé Ramalho se faz pela linha simbolista que por vezes encontra pontos de contato em Raul Seixas, mas não tão notadamente simbolista como naquele, pois com Raul Seixas se aprende muito sobre a “lei” e a “doutrina”, mas com Zé Ramalho vai-se à “liturgia”.

Faço aqui meu voto de gratidão ao trabalho e de admiração à obra deste admirável artista brasileiro, da Paraíba, o Senhor Zé Ramalho. Salve, nosso querido Zé!

.                                            A Peleja do Diabo com o Dono do Céu.

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