quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

A dor do instante

Bouguereau - lição difícil


Sinta a dor do instante. A dor do instante pura, sem subterfúgio de alívios imediatos. Preste atenção neste pedido urgente: você precisa de alguma maneira verificar a dor do instante como é. Fugir é para quem anda em desertos. Sinta este instante como é, totalmente, sem precisão de fuga. Apresse a si mesmo nisto. Sinta a dor do “instante este”, imerso naquilo que se diz vida, diante daquilo que se diz vida, sem querer escapar para outra coisa “maior” que a vida. Viver dói.

A vida pura, a vida imediata e urgente das questões não resolvidas que, imersas na dor, não se resolvem como cimento de cova e paralisação. Frente a frente com o que parece ser morte, mas é vida viva e pura, conforme se estabelece diante daquilo que o medo paralisa ante um verdadeiro ato sincero e honesto, a vida pode ser, finalmente, vivida.

Um suspiro, um vulto, o medo de estar imerso em si mesmo aparenta morte. Mas, na verdade, aquilo que o medo chama “vida” é que é na verdade morte, formato zumbilândia mundo. Diante do ato grave em que algo verdadeiro se apresenta assim, diante deste ato grave, pouco conta se alguém se dá como famoso, rico, esteta, bem quisto, necessário, competente, pois tudo isso apenas finge vida zumbi.

“Nunca há de se falar o que se sente” dentro da prudência que acovarda. Se prudência for virtude, então o caminho é pé atrás, sempre adiante o futuro que virá, trazendo de presente a vida lá depois da curva que acertará o caminho. Qual é? Como assim? E cada caminho traçado na imersão pura e simples de um único instante não é o total? Você gostaria de somar “mais”?  Deveríamos rir disto tudo, irmão.

Tens saudades do teu tempo de criança? Queres tirar água do poço com peneira? A criança é puro instante, experiência de vida pura, esquecida, retomada em um retrato em preto e branco totalmente distorcido. Vais querer mesmo procurar aquele caminho aonde morava teu coração esquecido? E aquela criança não é você mesmo, que cresceu? Então aquela criança agora tem medo de quê?

Retrovisores apontam para o cuidado em se dirigir atento para frente, mas mão no volante é aqui, agora, o instante este, total, abarcando os erros, percebendo as placas de cuidado, atenção e pare, quando for de parar, pois o carro acelera e anda sob comandos, ele não tem outro destino que não seja o do motorista. Mas alguém pode dizer que o acidente não deixa de ser uma experiência. Imerso na vida, sim. Por fora dela, é só um pouco mais de ação no teatro zumbi.

A dor da vida não se resolve interpretando simbolicamente o que mundo apresenta como sendo “seus atos”. Uma espetada aqui e ali não há como se evitar, e tudo o que você pode ter é o controle do carro, você não pode refazer a estrada a seu bel-prazer. Mas pode andar por trilhas no Cerrado, caminhar caminhos diferentes, soprar o vento na vela das barcas, o caminho está aí para ser percorrido, e nunca está limitado por coisa nenhuma que não seja o medo.

Mas o engraçado disso tudo é que advogamos pelo medo, não queremos vida viva de jeito nenhum. Viver se assemelha à morte no projeto zumbi. O mundo zumbilândia te oferece este prazer: viva a vida aguardando o futuro, imaginando-o em formas e atos na mente, vida viva na mente, até que o “instante este” seja súbito e instantâneo, diante do game over que se diz ser a única certeza.

 A única certeza do carro é mesmo o ferro-velho, mas com o motorista o negócio é muito diferente, não é mesmo? Cada respiração pede pela vida, mas o medo diz: “pare, cuidado, prudência, só se vive uma vez”, e até mesmo esta advertência o projeto zumbi distorce, em favor de um ato em pé atrás, para sempre por fora da vida, dentro da mente, pensamentos suicidas e algum julgamento para apaziguar a loucura diante de certezas e razões.

Eu tô precisando mesmo é viver. Não sei o que você vai fazer para se virar no projeto zumbi, diante do que está aí, posto; mas eu estou querendo sentir a dor de viver, irmão. Jogado no laço do vento, diante de expectativas que se constroem, mas que eu mesmo não domino. Meu amigo Marcos Morgado diz: a fé pode mover montanhas, mas nunca se sabe o lado do tombo. O projeto zumbi foi muito bem arquitetado, mano velho. Agradeço aqui ao meu amigo, que me ensinou isto.

Mas sempre haverá os defensores do projeto zumbi. Muitas vezes, seremos nós mesmos estes traidores. Por isso é preciso vigilância. “Vigia, vigia aí, não deixa ele te engabelar”. Como dizia Waly Salomão: “nada que se aproxima me é estranho”. Quero correr o risco de viver, este é meu desabafo. Espero forças para ver e refutar o projeto zumbi. Uma porta aberta, escancarada para o que vier, sem buscar prudência comprada na feira da luta pela sobrevivência. Eu ando morto há alguns anos. Sou um zumbi refletindo sobre minha própria condição, e haja saúde! Mas nisto já existe liberdade em enxergar, embora eu concorde totalmente que olhos há muito tempo acostumados com o escuro tem dificuldades em enxergar na luz. Eu vi a réstia. Quero caminhar para fora. Quem sabe a gente não se encontra por lá e participa da festa que deve estar rolando? Pois, para mim, quero apenas isto. Quero tudo o que é direito de quem é total, feliz, íntegro. Coitado é para quem coitado. Luz para nós todos, irmão, pois luz é para todos, senão é só lanterna em meio a escuridão. Eu não quero mais isso. Quero ser convidado para a festa, pois sei que agora mesmo tem uma galera lá. E festa boa mesmo é assim.

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